Eduardo Butakka
A minha história como artista mato-grossense no momento não é muito diferente da de qualquer outro artista nesses tempos de pandemia global. Mas, vamos lá. Eu estava encaixotando coisas quando a pandemia chegou, prestes a me mudar por uns tempos para São Paulo, onde entraria, pela primeira vez, em temporada por um mês em um teatro da capital paulista. Teatros fechados, planos adiados e alguns sonhos em caixas, outros espalhados pela casa. Isolado.
Passei por todas as fases do luto, a negação, a barganha, a raiva, a depressão e agora caminho para a aceitação. Mas não a aceitação de quem se conforma, mas sim de quem sabe que precisa se reinventar e que se sentir perdido faz parte dessa metamorfose. Desde então, tenho lido bastante, observado, assistido, procurado entender o contexto em que vivemos no ponto de vista artístico e tentado desenhar um horizonte para o teatro durante e pós-pandemia. Afinal, mesmo que os teatros reabram nos próximos meses, o público pode não querer frequentar salas cheias de pessoas estranhas de novo.
O que outros lugares do mundo, que tiveram suas vidas atingidas pelo coronavírus antes de nós estão fazendo? Quais ideias tiveram? O que posso trazer para o meu contexto?
Primeiramente, é preciso entender o momento em que vivemos. Fomos obrigados a trocar a presencialidade pelo virtual. Os grandes palcos pelas telinhas do celular. Esse é um processo que já vinha acontecendo, mas não no sentido da substituição extrema como acontece agora. Nós, artistas, de um modo geral, negligenciamos essa transição. Estávamos em negação por muito tempo, acreditando que não precisávamos nos reposicionar. Que não precisávamos de presença digital. Agora, temos que nos adaptar a duras penas, porque a pandemia não nos deu tempo de dominar a linguagem virtual.
Entre minhas pesquisas, li um artigo veiculado no The New York Times em abril deste ano que fala de uma iniciativa organizada por dirigentes de teatros americanos, chamada Play at Home (playathome.org). Ela consiste em estimular a produção de textos teatrais com menos de 10 minutos de duração e que possam ser lidos ou performados por pessoas em casa. O objetivo é dar suporte financeiro para os dramaturgos afetados pela crise, além de criar novas possibilidades de produção e interação com o público. Os textos selecionados pela curadoria do projeto recebem 500 dólares para serem disponibilizados ao público na plataforma virtual criada.
“Assim que sentimos que as coisas iriam piorar e todo mundo estava cancelando (as pautas nos teatros) e indo para o streaming, parecia importante não apenas compartilhar nosso conteúdo virtualmente, mas envolver as pessoas no ato de fazer teatro e participar da forma de arte de uma maneira diferente”, disse Stephanie Ybarra, diretora artística do Baltimore Center Stage e uma das idealizadoras do Play at Home.
O fato é que essa iniciativa, embora talvez não possa ser aplicada em Mato Grosso tal qual como foi nos EUA, devido ao nosso contexto diferente, traz luz a uma questão ainda mais importante: em tempos de crise, a solução é se unir. Unir os artistas do segmento e o público.
Um edital lançado recentemente pela Secretaria Estadual de Cultura, Esporte e Lazer (Secel-MT), chamado Festival Cultura em Casa é um bom exemplo de iniciativa para fomentar o segmento artístico em Mato Grosso. Os artistas selecionados podem apresentar seus trabalhos por meio de transmissões ao vivo, as já populares LIVES, e receberem por isso. Os projetos aprovados pelo edital vão desde apresentações artísticas até aulas a distância e palestras. Aqui, faz-se necessário frisar que o setor artístico movimenta bilhões na economia, gerando emprego e renda, correspondendo a 2,6% do PIB brasileiro (Firjan/ 2017). Então, este é um assunto superado. Continuemos.
Fui convidado para participar de uma dessas palestras virtuais, um bate-papo na verdade, organizado pelo Grupo Tibanaré e mediado pelos amigos artistas Jeferson Jarcem e Fernanda Gandes. O tema era: “Planejar, Criar e Produzir em tempos de mudanças. Estamos preparadxs?”.
A discussão, com participação ao vivo do público, não tinha a pretensão de responder essa questão de forma incisiva, uma vez que em nenhuma parte do mundo esse é um problema resolvido. Mas, cumpre com o preceito básico para esses tempos, que é o de manter o contato entre os artistas e propor uma discussão sobre como cada um está lidando com a pandemia e quais ideias podem ser replicadas ou mesmo aperfeiçoadas pelos colegas.
Alguns pontos importantes destacados no debate:
1 – Conexão: é importante não perder a conexão com o público. Para isso, a produção de conteúdo para os meios virtuais é imprescindível, seja a leitura de um poema, a publicação de fotos ou de textos que registrem a experiência artística durante a pandemia. É necessário manter uma certa frequência.
2 – Experimentação: utilizar o momento de isolamento social para experimentar novos conteúdos. Testar novos personagens, músicas, repertórios, ideias. Afinal, experimentar-se é uma necessidade do artista.
3 – Interação: pensar sempre que o ambiente virtual é um espaço democrático para todos que estão ali. O público precisa ser visto como ator, como integrante da performance. Precisa haver momentos de interação. Pensar de que modo essa intervenção do público se dará é um desafio de cada artista.
4 – Buscar formas de rentabilizar o trabalho artístico nas redes, afinal, o artista precisa receber pelo que faz, seja por meio de incentivo público, privado ou por cachês voluntários ou ingressos virtuais.
Entendo que o período da pandemia pode ser visto como três ondas até o momento. A primeira foi a da produção frenética de conteúdo. Todo artista, do mais famoso ao menos conhecido se viu com a necessidade de produzir algo para entreter ou aliviar a angústia daqueles que estavam em casa, em isolamento, inclusive a ansiedade de si próprio. Esse momento foi válido, porque reforçou a importância do artista enquanto um acalentador de almas.
A segunda onda, como eu chamo, foi a das LIVES e com elas vieram as superproduções. Artistas megafamosos viram a oportunidade de se aliarem a grandes marcas e produzir conteúdo “gratuito” para o público, com o pano de fundo das doações voluntárias para ajudar instituições no combate ao coronavírus. Embora a atitude seja louvável, no sentido de despertar o benfazejo nas pessoas, ela cria um novo padrão de consumo no público, um novo nível de exigência nas produções feitas. Esse padrão de qualidade audiovisual é algo que o artista independente não consegue simplesmente replicar, porque não possui nem o aparato técnico nem o conhecimento tecnológico para isso. E voltamos à estaca zero. Aquele espaço virtual que antes parecia democrático, de repente se transforma em um ambiente segregador.
Agora, estamos estrando no que considero como a terceira onda. O momento em que as superproduções das lives dos megafamosos não são mais novidade. Obter milhões de visualizações passou a ser uma marca que eles próprios não conseguem mais quebrar e por isso deixa de ser um objetivo. Parece surgir de novo espaço para o peculiar. Para o conteúdo independente e menos pasteurizado. E é aqui que devemos nos reinventar.
A palavra de ordem cada vez mais é “storytelling” e “interação”. O artista não vai conseguir substituir a experiência da presencialidade pelo virtual. Esquece. Mas podemos buscar formas de tocar as pessoas de outra maneira por meio das novas mídias, das mídias digitais. Esse é o nosso desafio. E é aí que chegamos à grande questão: só estar nas redes e postar conteúdo não bastam. Precisamos criar experiências. E como disse o filósofo Jorge Larrosa Bondía “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”.
O teatro não é mais nosso. O palco não é mais nosso. Agora todos estão no grande palco, que é a vida. E essa vida está sendo mediada pelas redes sociais. E nesse palco, como diria Shakespeare, todos somos atores. Precisamos nos transformar também em dramaturgos. Precisamos assumir o papel de cronistas do nosso tempo.
Precisamos escrever, registrar, mostrar, trazer o nosso olhar poético para a realidade que vivemos. Esse é o papel do artista. E não podemos ignorar mais que as outras pessoas possuem o mesmo direito que nós de estar nesse palco. E é aí que eu volto a falar da interação. Esse público não é mais mero espectador. Ele precisa participar. Só assim a distância que se deu nos últimos tempos entre a classe artística e o público vai diminuir. Quando entendermos que somos feitos da mesma matéria, a dos sonhos. Precisamos estar atentos ao que acontece no mundo. Nas iniciativas que são interessantes e adaptá-las para nossa realidade. Eu vi a questão dos cinemas drive-in, por exemplo, que eram sucesso na década de 70 e que agora voltaram. Acho que o teatro, os shows de música podem copiar esse formato. Imagina que interessante, nós nos apresentando para o público dentro dos carros. Essa é uma ideia que precisa ser aperfeiçoada para incluir aqueles que não possuem veículos. Mas é um caminho.
O futuro ainda é incerto. Temos que lidar com a realidade que temos agora. Até porque essa é a função do artista, entender e interpretar o seu tempo de forma sensível. Alguns países, como os Estados Unidos, preveem o retorno dos teatros para agosto. Assim mesmo com sua capacidade de lotação reduzida para um terço. Ou seja, isso vai encarecer as produções e reduzir a receita, podendo até inviabilizá-las.
No Brasil, que tende a copiar tudo dos Estados Unidos, podemos prever uma medida parecida para outubro, sendo otimista. Eu acredito que em novembro seja mais provável. E reparem que não se trata apenas de uma questão legal, de quando as autoridades vão permitir a reabertura dos teatros. Mas de quando a população vai se sentir segura em ir a um evento que não lhes custe a vida.
Ofato é que não podemos esperar e querer voltar pro mundo que deixamos lá atrás. Esse mundo já mudou. Negar isso é sofrer, é estagnar. O artista precisa, mais uma vez, ser resiliente e buscar nessa adversidade uma oportunidade de se reinventar. O mundo precisa do artista, e como disse Franz Kafka “no combate entre você e o mundo, prefira o mundo”.
Eduardo Butakka é ator, diretor e professor de Teatro formado pela UnB, publicitário formado pela UFMT, vencedor do prêmio indiano Golden Fox Awards por melhor vídeo para internet e novas mídias.