Um dos maiores vendedores de alimento do planeta, o Carrefour promove discussão sobre como dar de comer a 10 bilhões de pessoas até 2050
O crescimento das economias emergentes ao longo das últimas décadas trouxe um mundo de pessoas para o mercado consumidor, em especial para o consumo de alimentos. O crescimento da China dos anos 80 para cá impulsionou, por exemplo, a venda de commodities no Brasil, em especial, a de carne bovina. Enquanto o gigante asiático alcança um crescimento estável, Índia e países da África devem colocar outros milhões de pessoas no consumo.
O desafio para o mundo será atender o aumento da demanda por alimentos nessas economias em crescimento, impulsionada ainda pelo aumento na população mundial, que deve chegar a 10 bilhões de pessoas até 2050.
O economista Thomas Malthus alardeou o mundo no século 18 quando apresentou sua teoria de insuficiência da capacidade produtiva de alimentos diante de um crescimento populacional exponencial. O desenvolvimento tecnológico, porém, afastou a possibilidade de uma epidemia generalizada de fome para aquele momento.
Apesar do desenvolvimento das tecnologias e da melhora na produção de alimentos, o índice de produtividade da terra entre a segunda metade do século 20 e as primeiras décadas do século 21 não cresceu o suficiente. Segundo o Banco Mundial, a proporção de terras aráveis em 1960 era de 38 hectares por pessoa, com uma população de 3 bilhões. Em 2019, com uma população de 7,6 bilhões, a proporção caiu para 19,6 hectares por pessoa.
O drama especulado por Malthus parece mais vivo do que nunca. A preocupação das autoridades, empresas e para a população no geral é se o mundo vai conseguir aumentar sua capacidade produtiva para atender essa quantidade de gente. E com um agravante: se essa produção será sustentável. Afinal, é preciso produzir sem poluir e sem esgotar recursos naturais.
Reflexão no mundo empresarial
Ao formular seu plano global até 2022, o Carrefour colocou como um de seus objetivos se tornar líder na venda de alimentos orgânicos no mundo. O grupo varejista apoia a mostra “Pratodomundo”, que está em exposição no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, desde a última sexta-feira (12), com a finalidade de discutir as novas formas de produção sustentável e a necessária mudança de mindset para empresas, autoridades e consumidores sobre hábitos alimentares para que a humanidade consiga equilibrar a balança entre aumento populacional e produção de alimentos.
O Carrefour lançou o movimento Act for Food, que direciona ações e investimentos para permitir que seus clientes tenham acesso a alimentos de maior qualidade, seguros, produzidos com responsabilidade socioambiental e a preços justos. O movimento contempla o plano de conscientização sobre a transição alimentar até 2022. Para o diretor de Sustentabilidade do grupo no Brasil, o varejo tem a possibilidade de mobilizar toda a cadeia, como elo entre produtores e consumidores. “Para isso, ampliamos cada vez mais o sortimento de alimentos saudáveis e de qualidade, trabalhando ainda para que, com maior escala, os preços sejam cada vez mais justos”, afirma Paulo.
Segundo o executivo, a participação dos produtos orgânicos no total de vendas de alimentos no Carrefour dobrou por conta das iniciativas voltadas ao consumo consciente, que foram aceleradas em 2018. “À medida que você consegue fazer com que esse preço esteja mais próximo do preço do produto tradicional, os consumidores passam a aderir. É preciso incentivar o consumo e ter mais oferta desses produtos”, afirma Pianez.
Plantando no deserto
Um dos curadores da mostra “Pratodomundo”, Leonardo Menezes, destaca a perda de importância do Brasil na construção de uma alimentação sustentável e de um sistema eficiente de produção dos alimentos. “Nos anos 60, tínhamos mil tipos de feijão e agora o carioquinha responde por 70%. Estamos perdendo biodiversidade”, alerta o curador.
Ele lembra ainda que um terço da produção de alimentos do mundo é desperdiçada e que esse nível de desperdício, que já pesa bastante sobre a segurança alimentar das populações mais desguarnecidas, tende a agravar dramaticamente a escassez de alimentos. Até 2050, além de a humanidade precisar de mais 60% de alimentos do que precisa hoje, para suportar a produção extra precisará de 40% a mais de água e 50% a mais de energia.
Para tanto, a mostra destacou as possibilidades de produção em espaços ainda pouco explorados, como nas áreas urbanas. “A gente tem que fazer com que os alimentos não tenham que vir de 500 quilômetros de distância”, afirma Menezes, que destaca iniciativas como em Tóquio, onde uma fazenda vertical foi instalada em um prédio abandonado para ajudar a alimentar uma das maiores populações urbanas do mundo.
Plantações no deserto também são iniciativas em desenvolvimento. Menezes revela que 30 projetos de cultivo em desertos já estão em operação e a irrigação das áreas acontece, principalmente, por processos de dessalinização da água dos mares próximos. Na África Subsaariana, há um projeto de combate à desertificação por meio do reflorestamento.
Um mar de oportunidades
Para combater a escassez, a biodiversidade marítima é um poderoso aliado. Os ecossistemas marítimos compreendem 250 mil espécies descobertas pelo homem, mas estima-se que essa quantidade seja de cerca de 1 milhão de espécies.
Os mares, além de ampliar a oferta, tornam-se grande oportunidade de substituição de proteínas mais danosas ao meio ambiente, como a da carne vermelha, cuja produção tem impactado de maneira importante os índices de desmatamento de florestas e emissão de metano, gás poluente produzido pelos animais “Não podemos mudar as vacas, mas precisa gerar uma estratégia de mecanismo de compensação, que está avançando bastante a nível mundial. Também estão nascendo vários esforços para diminuir a quantidade de água necessária para produzir cada quilo de carne”, afirma Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil.
Duas gigantes da alimentação anunciaram ainda neste mês iniciativas importantes para reduzir a utilização da carne bovina. A Nestlé informou que vai trazer ao mercado seus hambúrgueres à base de proteína de soja. No primeiro momento, a iniciativa fica restrita a Europa e Estados Unidos. O Burger King também entra na onda e vai testar hambúrgueres sem carne em 60 unidades de uma das regiões do Missouri (EUA).
Produtoras e distribuidoras de hambúrgueres como o Burger King são muito relacionadas à questão do desequilíbrio ambiental por conta da promoção do consumo frenético de carne bovina, afirma Zavala. Mas ele crê que há esforços dessas empresas no sentido de produzir carnes mais sustentáveis.
Zavala destaca a produção de peixes como muito mais eficiente no fornecimento de proteína para a dieta humana. Ele aponta ainda o potencial de produção que o Brasil possui nesse segmento, com seu vasto litoral e com a cultura disseminada de norte a sul do consumo de pescados. “O consumo de pescados entre os brasileiros cresceu entre 60% e 70% nos últimos 15 anos, mas esse aumento obrigou o País a importar produção da Ásia”, afirma o representante da FAO, ressaltando que o Brasil é capaz de alavancar sua produção de frutos do mar. “Estamos falando com a Secretária de Pesca para que elimine qualquer mecanismo de prevenção e de compra por parte da União Europeia mediante os sistemas de manejo de piscicultura”, afirma.
Rebanhos mais saudáveis
Entre os projetos tocados pelo Carrefour no Brasil para tornar a produção alimentícia mais sustentável está o de apoio a produtores de carne bovina no Mato Grosso, que começou no ano passado. A varejista é uma das envolvidas no processo de assessoramento de quase 400 produtores da região que estavam fora do sistema por conta de problemas relacionados à sustentabilidade da produção.
“Os produtores estão recebendo assessoria em melhoria do pasto, na nutrição animal, da melhoria genética do rebanho e na reversão da área degradada, porque, assim eles vão poder fazer a regularização ambiental e vão ter muito mais acesso para distribuir seus produtos”, afirma Pianez, diretor de Sustentabilidade do Carrefour.
O cuidado com a pecuária brasileira é fundamental para a segurança alimentar no mundo para os próximos anos e se a humanidade quiser chegar a 2050 com o problema da escassez de alimentos ao menos controlado, a produção de proteína brasileira deve estar no centro da discussão.
Leonardo Menezes, curador da mostra “Pratodomundo”, também destaca a necessidade de se recorrer a outras formas de proteína animal, para além das fontes mais consumidas no Brasil. “A classe média no mundo está crescendo, especialmente na China, e ela quer consumir carne e nós precisamos oferecer alternativas. Mais de 2 bilhões já comem insetos e existe 1.400 espécies comestíveis. Lembro que, no Nordeste, havia a cultura de se comer farofa de tanajura (uma espécie nacional de formiga). Essa é parte de uma cultura local que morreu e precisamos recuperar”, afirma.
Lições do Brasil no combate à fome
Para Zavala, o Brasil deu grandes lições ao mundo a respeito da alimentação. A primeira delas foi o combate à fome, que culminou com a exclusão do Brasil do Mapa da Fome em 2014. A crise econômica, porém, reverteu os resultados positivos e o Brasil voltou a sofrer com a desnutrição em 2016.
Parte importante do combate à fome foi a política de alimentação escolar, promovida depois da instituição do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento para a Educação) que contribuiu muito “com os objetivos de diminuir abaixo dos 5% a população em condições de inseguridade alimentar, que trata da população que vai à cama sem ingerir as calorias em quantidade e qualidade suficientes”, explica Zavala.
O fortalecimento da alimentação escolar no Brasil avançou rapidamente, segundo Zavala, também por conta da ação das administrações municipais junto aos produtores locais para diversificar o cardápio de acordo com o que a região oferece. O resultado não foi só o combate à desnutrição, mas também ao fortalecimento de uma cultura local de alimentação.
Para o representante da FAO, deve haver um esforço muito significativo sobretudo em países latino-americanos para a manutenção de uma alimentação saudável e regional. “O que temos observado é o aumento da população obesa. Teremos que gerar uma estratégia para fortalecer uma cultura alimentar saudável”. Caso contrário, será inevitável o aumento nos casos de doenças relacionadas à má-alimentação. “Os problemas decorrentes da obesidade foram os grandes responsáveis por enfermidades crônicas não transmissíveis, como o diabetes”, destaca.
Oferecer alimentos a 10 bilhões de pessoas num horizonte de 20 anos compreende criar sociedades mais equitativas e alterar a cultura de consumo de alimentos, que nos últimos anos foi dominada pela proposta anglo-saxônica, cujo maior representante são os Estados Unidos, com seu consumo baseado em muitas calorias e poucos nutrientes fundamentais. Uma dieta como essas e o preço para produzi-la será insustentável para um mundo que quer dar de comer a populações emergentes enormes como de China, Índia e Nigéria.
Não é possível reproduzir, portanto, a cultura de consumo americana nas economias emergentes, sob pena de esgotamentos de diversas ordens. Para Zavala, é preciso mudar a maneira de se pensar o consumo, “oferecendo alimentos, e não apenas comida. Fazendo com que a sociedade civil compreenda melhor o conceito de alimentar-se e consiga promover uma nova cultura”, conclui.